Aos consultórios médicos chegam cada
vez mais "pequenos ditadores" que os adultos já não conseguem
controlar. São filhos de pais que têm medo de ser tiranos. Mas as crianças sem
limites não são livres, defendem especialistas
Retirado de:
"Não vou". "Não quero". "Só faço se
quiser". O problema não é uma criança dizer isto. O problema é quando ela
faz precisamente o que diz e os adultos já não têm o poder de a contrariar. Não
é uma questão portuguesa mas da generalidade das sociedades ditas desenvolvidas.
Os consultórios dos pedopsiquiatras e dos psicólogos estão a encher-se de
meninos-rei, pequenos ditadores, crianças sem limites, algumas a caminho da
delinquência apresentadas por pais aflitos e referenciadas por professores
fartos.
Mais do que um problema, a
omnipotência destas crianças é um sinal. Tem a ver com a falta de limites que
resulta de uma organização social desregrada, sem tempo para o investimento
emocional na criança.
A perspectiva da necessidade de
construir "uma cultura da diferença de tempos" defendida pelo
filósofo e psicanalista francês Raymond Bénévenque, para quem "é no mundo
dos adultos que se deve lutar por um outro futuro das crianças",
encontra-se nos discursos do médico pedopsiquiatra Pedro Strecht e das
psicanalistas Carmo Sousa Lima e Maria Teresa Sá. Por trás do problema das
crianças sem limites, identificam a falta de tempo, a velocidade que muitas
vezes não deixa pensar. E a incapacidade de pensar dá lugar à depressão que tem
como uma das manifestações a chamada omnipotência infantil.
Em educação tem de haver tempo.
"Para haver qualidade, tem que haver quantidade e disponibilidade",
considera Pedro Strecht. "Os pais passam muitas horas a trabalhar, muitas
crianças chegam a estar 10, 11 horas em jardins de infância e na escola. O
reencontro no final do dia acontece numa situação de grande vulnerabilidade
emocional com crianças cansadas, com birras, com pouco tempo para cumprir as
rotinas e com pais extremamente cansados do trabalho, portanto num ponto de
desencontro, de choque e de conflito. Pela falta de tempo e pela culpabilidade
dos pais em relação a isso, a permissividade aumentou e aumentou aquilo que
vários autores chamam os objectos compensatórios, no que respeita tanto a
objectos como à própria relação". A delimitação de regras fica para trás e
o que se observa muito hoje - diz Pedro Strecht - é que "temos cada vez
mais miúdos que num registo familiar não têm estas balizas e que depois
transportam para outros registos, a escola, a sociedade" toda a sua
inquietação.
A dificuldade de impor e de aceitar
limites paga-se "caro vida fora", adverte Maria Teresa Sá. "Os
pais têm medo do poder. Como que sofrem de um excesso de democracia [entre
aspas]. Há uma perversão, como na democracia. Muitos pais têm dificuldades com
os limites porque têm medo de ser tirânicos. Têm medo de ser como os pais, como
os avós ou como o modelo que eles intuíram da sociedade antes deles", diz
Carmo Sousa Lima.
E os exemplos sucedem-se: na escola,
António, dez anos. A professora anuncia: "Hoje é teste". Ele cruza os
braços: "Não faço". E não faz.
Em casa: Rita, nove anos, filha
única. A mãe diz-lhe para desligar o computador e ir para a mesa jantar. Ela
continua imóvel à frente do ecrã. A mãe repete a ordem. A miúda não se mexe. Já
irritada, a mãe aproxima-se e desliga o computador. Rita protesta, grita e
volta a ligar o computador. Empurra a mãe, não vai jantar.
No consultório médico, Pedro, oito
anos, para o pedopsiquiatra: "Olha, já parti portas, um dia se tu
quiseres, também posso partir esta do teu consultório... Se quiseres
ver..."
O número de casos "é muito
significativo e, sobretudo em relação a anos atrás, é muito mais intenso",
diz Pedro Strecht.
A importância da autoridade
O que faltou ou o que tiveram a mais
estas crianças para se tornarem assim? Strecht recua até aos primeiros tempos
da vida da criança e da relação precoce com os pais. Refere o médico
psicanalista inglês Donald Winicott e a sua ideia de "holding" para
explicar a necessidade do envolvimento da criança "num círculo de amor e
de força" juntando o afecto e o investimento emocional à fixação de
limites. "Na própria relação com o bebé, é isso que se faz", explica
o pedopsiquiatra. "Quando um bebé está inquieto, a pessoa pega-o ao colo,
envolve-o fisicamente. A modelação emocional é feita também à custa de um "holding
físico". O que acontece depois é que os miúdos vão integrando
progressivamente e de forma cada vez mais autónoma o holdingemocional
sem ser preciso tanto o holding físico, de uma forma cada vez
mais auto-regulada". Quando isso não sucede pode querer dizer "que
não houve esse holding físico de delimitação, de força, no
"sentido de contenção emocional e verbal."
A explicação para as manifestações
de tirania por parte destas crianças passa então pela pergunta acerca do que
tiveram elas a mais. Como nota a psicanalista Carmo Sousa Lima, "o excesso
de sim perturbou a capacidade das crianças tolerarem o não",
mas "é o não que faz valorizar o sim e
não o contrário". Depois do período de "maravilha" e de
"encantamento" que rodeia o bebé nos primeiros tempos, os pais devem
educar os filhos para a realidade, defende. "Há aspectos da realidade de
que os pais não podem proteger a criança sob pena de esta enlouquecer ou cair
nessa omnipotência que agora é tão corrente aparecer nos consultórios". Há
pais, mães que "são de uma ansiedade tal que a criança não pode sair de
dentro delas e continua a viver numa espécie de uma bolha protectora, mas que a
vai destruindo em termos de autonomia e de identidade", diz, sublinhando
que "são os limites que protegem a criança".
Ao contrário do que muitos adultos
ainda pensam, "uma criança sem limites não é uma criança livre", diz
Teresa Sá, psicanalista e professora na Escola Superior de Educação de
Santarém. Que se desfaça a confusão: "Uma criança sem limites é escrava
das suas pulsões e não é feliz, vive angustiada". Entregue a si própria
"não tem outro guia senão a satisfação imediata". Se quer uma coisa,
agarra-a, se não está contente, bate. E se, a curto prazo, isto até pode ser
agradável, "paga-se caro, vida fora". Teresa Sá explica como.
"Constitui-se como um verdadeiro sofrimento psíquico, visto que o sujeito
se encontra na impossibilidade de se frustrar minimamente, de dizer não a si
próprio, e não somente de dizer não ao educador". O que correntemente se
designa por omnipotência, "não é unicamente a vontade de dominar os outros
e de não levar em conta senão o seu próprio desejo, mas, de igual modo, a
impotência e a impossibilidade de se dominar a si mesmo, de se limitar",
esclarece. "Parecendo dono do mundo, o sujeito está na verdade desmunido,
pois não se sente dono do seu próprio mundo interno".
Daí, a importância da autoridade na
educação. Carmo Sousa Lima fala antes do exercício de um "bom poder".
A capacidade de lidar com os limites "é um poder muito bom,
indispensável", diz. "Todos temos uma margem de poder que está em
tudo. Podemos falar, comer, amar, mas há pessoas que não podem. Há patologias
que não deixam. Por isso, a palavra o poder em si própria é uma palavra muito
boa, com um sentido muito profundo". O bom poder "é o poder de dizer
"não" na justa medida das coisas que são razoáveis dizer que não. E
de dizer que sim naquilo que ajuda a criar uma melhor pessoa".
É a autoridade "exercida pelos
educadores (pais, professores, instituição) que permite à criança e ao jovem
integrar os interditos fundamentais ligados à socialização", salienta
Maria Teresa Sá. "Um adulto que permite tudo não é, para a criança, um
adulto que lhe dê segurança".As crianças reclamam, aliás, esses limites
quando levam os adultos ao limite (a "passarem-se da cabeça e
agirem"). É "como se a criança estivesse a levá-los a colocarem
limites". E quando isso não se verifica, "pode acontecer que seja a
própria criança ou jovem a colocar o limite, em escalada, geralmente com o
corpo, caindo, magoando-se, pondo-se em perigo". Sem autoridade "a
criança sentir-se-á insegura, deixada só nas perigosas marés da sua
impulsividade e destrutividade, abandonada, negligenciada", nota Maria
Teresa Sá.
Pedro Strecht alerta, contudo, para
o facto paradoxal de, a par da permissividade, existir um regresso ao
autoritarismo" e para a necessidade de isso não acontecer. Face às ideias
de que, para enfrentar os problemas da educação é preciso uma "educação
espartana" e que "antigamente é que era bom", Strecht diz que
"não há nada mais falso". "Sabemos que no campo da saúde mental
e da infância, isso é absolutamente mentira". E lembra: "Se hoje as
escolas estão cheias de problemas, em 1974 a escolaridade obrigatória
limitava-se à quarta classe. E se formos ver, há cem anos não havia meninas nas
escolas e a maioria da população escolar andava descalça e isso é que era um
problema".
Tem de haver autoridade, sim, mas
uma autoridade "protectora", defende o pedopsiquiatra. Que proteja as
crianças "dos seus próprios movimentos mais primitivos, mais
agressivos", nota Carmo Sousa Lima. Uma autoridade com afecto como defende
o psiquiatra Daniel Sampaio. Para promover o desenvolvimento e a autonomia. E
"passar de uma navegação à costa para uma navegação à distância", sem
a perder de vista, exemplifica Pedro Strecht, deixando claro que se não for
feito na infância, este trabalho se tornará muito mais difícil na adolescência.Retirado de:
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