Tendo em conta a análise do relatório elaborado por um grupo de trabalho nomeado pelo governo, em janeiro de 2014, para “desenvolver um estudo com vista à revisão do quadro normativo regulador da educação especial”, divulgada em vários jornais nacionais, transcrevemos abaixo, aleatoriamente, excertos da análise de um deles (Jornal Público – 11/06/2014).

PONTO

 Há crianças a ser encaminhadas para a educação especial que deviam ter outras respostas
Grupo de trabalho diz que são precisas outras respostas para quem tem dificuldades de aprendizagem. Educação especial deve ser só para quem tem necessidades permanentes. Governo vai estudar propostas e afirma que não pretende diminuir investimento no sector.
O subsídio de educação especial deverá ser revisto e a legislação sobre educação especial sofrer alterações para que se clarifique que crianças podem ser enquadradas no conceito de “aluno com necessidades educativas especiais” (NEE). Ao Serviço Nacional de Saúde deverá passar a caber sempre a avaliação dos casos, diz o grupo de trabalho nomeado em Janeiro pelo Governo para estudar o assunto.
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“Em 2007 foi feito um estudo de prevalência de NEE entre os jovens e chegou-se a um rácio de 1,8%. O que corresponderia a pouco mais de 30 mil alunos. Ou o rácio não está bem feito, ou então temos alunos [mais 30 mil]que estão para além desse rácio”, disse Pedro Cunha, da Direcção-Geral da Educação, coordenador do grupo de trabalho.
O grupo defende um novo conjunto de respostas para os meninos com dificuldades de aprendizagem (como a dislexia, por exemplo) — como a criação “de equipas multidisciplinares de apoio à aprendizagem” que tenham como missão combater o insucesso escolar. Isto para que essas crianças não venham, por falta de intervenção, a tornar-se alunos com NEE.
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Ficou prometido que “não se pretende diminuir o investimento”. O que acontece, contudo, notou Grancho, é que “o conceito de necessidades educativas especiais passou a ser uma grande categoria” e é preciso clarificá-la.
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A primeira recomendação do grupo, que tinha elementos da Segurança Social e da Educação, e, como missão, “desenvolver um estudo com vista à revisão do quadro normativo regulador da educação especial”, é, então, “manter o âmbito da intervenção dos serviços de educação especial” tal como previsto na lei, “direccionando os apoios especializados para as crianças com alterações de carácter permanente nas estruturas e funções do corpo”, criando respostas “para os alunos com dificuldades na aprendizagem”.

CONTRAPONTO

As declarações recentes de altos responsáveis do ministério da Educação, proferidas no Palácio das Laranjeiras, em Lisboa, acerca da condução que presumivelmente irá ser dada à educação de alunos com necessidades educativas especiais (NEE) deixaram-me perplexo, por demonstrarem uma impreparação evidente que irá mergulhar, ainda mais, esses alunos num prolongado insucesso escolar que levará muitos deles ao abandono escolar, com todas as consequências gravosas que daí advêm.
João Grancho, ex-secretário de Estado do Ensino Básico e Secundário, afirma, por exemplo, que “É necessário especificar e clarificar que públicos é que são alvo da educação especial”, como que a deixar perceber que ao serem “alvo da educação especial”, passarão a fazer parte de um “ensino” especial com cheiro a “segregação”. Ora, já há mais de 25 anos que ao termo “educação especial” não lhe é dado este sentido, embora a Lei de Bases do Sistema Educativo (Lei 46/86, de 14 de outubro) teimosamente continue a considerá-lo por falta de revisão. Hoje em dia, fruto dos princípios que regem o movimento da inclusão, o termo “educação especial” refere-se a um conjunto derecursos especializados que a escola, a família e a comunidade devem ter ao seu dispor para poderem responder com eficácia às necessidades dos alunos com NEE. Depreende-se, assim, que o conceito de educação especial está longe de ser um “ensino” paralelo ao ensino regular. É, sim, um conjunto de serviços especializados a que todos os alunos com NEE têm direito sempre que deles necessitem.
Pedro Cunha, técnico da Direcção-Geral da Educação, coordenador do grupo de trabalho nomeado em Janeiro pelo Governo para “desenvolver um estudo com vista à revisão do quadro normativo regulador da educação especial”, também faz declarações em que parece evidente a mesma noção de educação especial, evidenciadas num fragmento do seu discurso, em que se refere à “integração de alunos na educação especial”. Que quererá ele dizer com isto? Mas, vai mais longe, ao afirmar, como recomendação do grupo de trabalho, que, tal como previsto na lei, “os apoios especializados devem ser direcionados para as crianças com alterações de carácter permanente nas estruturas e funções do corpo” (continua a teimosia da obrigatoriedade do uso da CIF), criando outro tipo de respostas “para os alunos com dificuldades na aprendizagem”. Ora, o que Pedro Cunha já devia saber é que as dificuldades de aprendizagem advêm de diferenças nas estruturas e funções do cérebro, afetando a capacidade de um aluno para processar informação (para a receber, a armazenar, a rechamar e a comunicar). Devia ainda saber que elas são vitalícias, portanto reais e permanentes.
Também, segundo um outro órgão de comunicação social (julgo que açoriano), Pedro Cunha referiu a dislexia e odéfice de atenção como exemplos de dificuldades de aprendizagem. Mais uma vez devia perceber que os tipos mais comuns de dificuldades de aprendizagem (dislexia, discalculia, disgrafia), resultam essencialmente em problemas graves nas áreas da leitura, da matemática e da expressão escrita, embora possam ocorrer em concomitância com outro tipo de desordens (do processamento auditivo, do processamento visual, das funções executivas e, também, do défice de atenção/hiperatividade), mas não são dificuldades de aprendizagem. Pelo contrário, no caso do défice de atenção/hiperatividade as suas características podem ser atribuídas a desequilíbrios neuroquímicos que devem ser tratados tendo por base uma combinação de terapias comportamentais e medicação, quando necessária.
Ainda, mais uma gigantesca argolada do grupo de trabalho, acredito que resumindo os depoimentos das mais de 50 entidades que o grupo ouviu, tem a ver com a infeliz afirmação de que “deverá passar a caber sempre ao Serviço Nacional de Saúde a avaliação dos casos”. É mesmo de quem não faz a mínima ideia de como identificar, avaliar e intervir com alunos com NEE. Lamentável. Ou será que pretendem recuperar os centros de saúde que andam por aí a fechar, transformando-os em escolas-hospitais?
Quanto às afirmações dos três secretários de Estado presentes na apresentação da síntese do relatório, no que respeita ao financiamento, de que “não houve desinvestimento no sector, ao contrário do que por vezes se diz”, acredito que até seja verdade. Mas, dar o exemplo do aumento dos beneficiários de subsídio de educação especial (13.959, em 2013, contra 11.619, em 2011), afirmando que “este subsídio serve para ajudar os pais a pagar apoios especializados que as escolas não garantem” é reconhecer a própria ineficácia do sistema. É na escola e não fora dela que os alunos com NEE devem receber uma educação apropriada às suas capacidades e necessidades.O Relatório da União Europeia sobre Educação e Formação (2012) assim o atesta, ao dizer que “não obstante os compromissos assumidos pelos Estados-Membros para promoverem uma educação inclusiva, os sistemas de ensino ainda não oferecem um tratamento adequado às crianças com necessidades educativas especiais”.
No caso do nosso País, eu iria mais longe, afirmando que esta falta de tudo, em termos políticos, sociais, científicos e pedagógicos que, infelizmente tem vindo a aparecer, em grandes parangonas em quase todos os jornais, demonstra um desconhecimento atroz, uma insensibilidade sem precedentes e um desrespeito ímpar pelos direitos das crianças e adolescentes com NEE e das suas famílias por parte de quem deveria defendê-los.
LMC